Crimes sob as chuvas

21 de agosto de 2012, às 15h12 - Tempo de leitura aproximado: 3 minutos

Compartilhar esta notícia

Mais uma virada de ano com os brasileiros sofrendo com tragédias urbanas, chorando mortos, amparando sobreviventes, contabilizando prejuízos. Outra vez nossas cidades são pegas despreparadas pelas chuvas que se repetem todos os anos. De novo nossas autoridades se mostram surpresas, uma surpresa injustificável já que conhecem os problemas de suas cidades, principalmente os que envolvem diretamente a vida da população em áreas de risco, justo os mais evidentes.

Logo, contudo, voltaremos à “normalidade” da vida anterior, como se isso fosse possível para aqueles que perderam parentes, perderam o lar arduamente construído, perderam tudo. Antes do próximo ano tudo será esquecido, a vida anterior retomada, até que outra tragédia nos faça chorar de novo. Onde acontecerá? As encostas, as áreas inundáveis e outras zonas de riscos voltam a ser ocupadas, com a aprovação silenciosa de todos e, fingindo não perceber tornamo-nos cúmplices da irresponsabilidade urbana que mata – e mata muito – sob os mais diferentes pretextos, não só nas chuvas. Findas as chuvas, nem as lições ficam para evitar tragédias semelhantes. Não custa, porém, registrar ao menos duas das duras lições que todos os anos se repetem.

A primeira é que a cidade é uma coisa muito séria e não pode mais ser tratada apenas como um objeto político. Grandes ou pequenas, são complexas e devem ser tratadas por profissionais especializados nas diversas áreas de conhecimento que envolvem, com papel especial para o urbanista que tem a visão de seu conjunto. Nem só o político, a quem compete decidir baseado em alternativas técnicas – nem só o técnico, que deve subsidiar o político com as soluções técnicas, mas também com a participação institucional efetiva da sociedade civil organizada.

Outra lição que salta aos olhos é a urgência da execução das leis urbanísticas. Hoje praticamente todas as cidades têm um plano diretor e suas disposições para uso e ocupação do solo urbano, que existem para serem de fato aplicados – é óbvio – e não só para cumprir exigências legais, ou compor a estante do gabinete dos prefeitos. Não é mais admissível se ouvir falar em falta de planejamento como álibi para crimes na gestão do desenvolvimento urbano, em especial no processo da ocupação do solo das cidades. Temos planos e leis de sobra que deveriam estar sendo cumpridas, e não estão. O Plano Diretor de Cuiabá, por exemplo, de 1992, é pioneiro no Brasil no uso de uma Carta Geotécnica, tão falada hoje nos comentários nacionais pós-catástrofe. Para que, se as leis resultantes não são respeitadas?

Repetido o falso argumento da falta de planejamento – sempre alegada entre lágrimas nessas horas – pois que fosse então aplicada a Lei Federal 6766 de 1979, que proíbe em todo o Brasil o parcelamento de áreas inundáveis ou com declividade acima de 30%. Uma só! Quanta gente teria sido salva e dores evitadas se ao menos esta lei fosse aplicada em suas três décadas de existência oficial, mas de criminosa desconsideração na vida real de nossas cidades.

Assistindo nestes dias ao fantástico Avatar em 3D e à belíssima Corrida de Reis, pensei sobre a rápida difusão da tecnologia de ponta em todos os setores da vida, menos na gestão das cidades brasileiras. Apesar de abrigar a maioria da população, nas suas realidades não conseguem usufruir do urbanismo em toda sua ciência e tecnologia. A esperança é a pressão da cidadania a ser um dia puxada por seus segmentos especializados, notadamente as universidades e o sistema Confea/Crea, cobrando a estruturação técnica legalmente competente das administrações e a responsabilização das autoridades, em todos os níveis, pela cruel negligência com a legislação urbanística.

* JOSÉ ANTONIO LEMOS DOS SANTOS, arquiteto e urbanista, é professor universitário (joseantoniols2@gmail.com)