Ameaça aos recursos hídricos
22 de janeiro de 2007, às 0h00 - Tempo de leitura aproximado: 12 minutos
A agricultura desenvolvida de forma não sustentável representa uma ameaça aos recursos hídricos no Brasil, afirma o arquiteto e ecologista Maurício Andres, secretário-geral substituto da ANA (Agência Nacional de Águas). Com mais de 10 anos de experiência na área de meio ambiente, ele avalia que, sem controle e uma legislação ambiental mais rígida, atividades como a irrigação de plantações podem provocar o esgotamento de parte dos mananciais. “O setor rural brasileiro consome 82% da água disponível. Desse montante, a irrigação responde por cerca de 69%”, destaca.
Andres defende que os países da América do Sul e os governos estaduais devem começar a estruturar e institucionalizar desde já a gestão de recursos hídricos para evitar disputas pela exploração da água no futuro. “Um dos princípios básicos a lei das águas é o uso múltiplo de recursos hídricos pelos diversos usuários – a industria, a agricultura, o transporte hidroviário, o consumo humano e animal, a geração de eletricidade, o turismo, o esporte e lazer, etc. Para se evitarem desentendimentos entre setores e entre Estados ou países vizinhos, é urgente estruturar e institucionalizar o sistema de gestão de recursos hídricos”, sustenta. “Nesse sentido é uma prioridade a cooperação latino-americana, a capacitação e a troca de informações entre os vizinhos que compartilham bacias transfronteiriças”, frisa.
Debatedor desta semana do Fórum sobre o Relatório de Desenvolvimento Humano, Andres afirma ainda que novas regiões brasileiras podem vir a enfrentar problemas devido à falta de água. “Além dos problemas de escassez de água no Semi-Árido, devido a problemas de oferta, já existem conflitos de quantidade e de qualidade nas regiões metropolitanas e nas regiões mais populosas do país devido à poluição. Outras regiões brasileiras podem vir a sofrer com a escassez de água, caso não se aprofunde o processo de gestão adequada e caso não se mude, culturalmente, a forma de relação da população com a água”, disse em entrevista à PrimaPagina.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail.
Embora afirme que o Brasil é um dos poucos países no mundo que possuem mais água do que podem consumir, o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 destaca que o país tem no Nordeste um “polígono seco” que enfrenta um problema crônico de falta de água. Por que a água não chega a quem precisa?
Maurício Andres – Mais do que um problema de escassez de água, essa é uma questão política e social, pois a apropriação dos recursos é realizada pelos que têm maior poder político e econômico e, num quadro de extremas desigualdades, os pobres têm menores possibilidades de ter acesso à água. A ANA concebeu e implementou inicialmente o Programa de cisternas rurais o Semi-Árido para garantir água para a subsistência da população rural dispersa. Após o programa ter sido “calibrado” pela ANA, ele hoje é executado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e tem uma meta de se chegar em três anos a um milhão de cisternas.
Historicamente houve má alocação de recursos em obras desnecessárias, deixadas inacabadas. Muitas das sedes de municípios no Semi-Árido terão um quadro crítico de abastecimento de água até 2025 ou enfrentarão crise decorrente de incapacidade de seus sistemas de captação, adução e tratamento da água. A Agência Nacional de Águas elaborou propostas para ajudar a resolver as demandas atuais e futuras de água na região. O Atlas Nordeste – Abastecimento Urbano de Águas abrange toda a região semi-árida e propõe alternativas de abastecimento de água com sustentabilidade hídrica e operacional às sedes municipais que beneficiariam 34 milhões de habitantes. Por meio do Atlas, a ANA identifica alternativas para oferta de água com garantia hídrica para sedes municipais do Nordeste e do norte de Minas Gerais. O Atlas contribui para superar esses problemas, ao mapear e facilitar que os recursos sejam alocados em obras que atendam a necessidades reais.
O crescimento do consumo de água nas grandes cidades tem levado à exaustão mananciais que abastecem milhões de residências. Além disso, as previsões sobre os possíveis efeitos das mudanças climáticas são de que as secas tendem a ficar mais intensas. Frente a esse cenário, o senhor acha que outras regiões brasileiras – além do Semi-Árido – podem vir a sofrer com a escassez de água?
Andres – Além dos problemas de escassez de água no Semi-Árido, devido a problemas de oferta, já existem conflitos de quantidade e de qualidade nas regiões metropolitanas e nas regiões mais populosas do país devido à poluição. Outras regiões brasileiras podem vir a sofrer com a escassez de água, caso não se aprofunde o processo de gestão adequada e caso não se mude, culturalmente, a forma de relação da população com a água. As mudanças climáticas podem vir a incidir sobre a disponibilidade de água e agravar a ocorrência de eventos críticos, tais como secas, enchentes, rompimentos de barragens, etc. Diante desse quadro e dos desafios emergentes, a adequada gestão dos recursos hídricos é cada vez mais necessária e primordial para evitar que os problemas se agravem.
Especialistas são unânimes ao dizer que milhares de vidas poderiam ser salvas se toda a população tivesse acesso à água potável. No entanto, o Brasil ainda possui um número significativo de mortes decorrentes de doenças relacionadas à falta de água própria para consumo. A questão da água tem sido tratada como uma prioridade no Brasil?
Andres – A gestão das águas no Brasil historicamente não foi uma prioridade, pois prevalecia apenas um grande usuário – o setor elétrico – e não havia a percepção cultural de tratar-se de um bem escasso e valioso. O grande déficit de saneamento prejudica as condições de saúde e aumenta o índice de doenças de veiculação hídrica. Mesmo na Amazônia, região em que existe abundância de água, uma expressiva parcela da população mais pobre não tem acesso à água potável e ao saneamento. Também nesse ponto a ANA deu uma contribuição original, por meio do Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas (PRODES), que associa o subsídio a estações de tratamento de esgotos ao resultado obtido após sua construção e operação e à implementação pelo comitê da bacia hidrográfica dos instrumentos de gestão. O objetivo do programa é reduzir os níveis de poluição por esgotos domésticos nas bacias hidrográficas brasileiras para melhorar a qualidade das águas. Desde 2001, o PRODES investiu R$ 84,4 milhões em 37 estações de tratamento de esgotos (ETEs). Em contrapartida, as prestadoras de serviço de saneamento têm R$ 272 milhões declarados para investimentos em estações de tratamento, o que resulta num retorno para a sociedade de R$ 3 para cada R$ 1 pagos pelo programa.
O RDH 2006 aponta alguns casos de regiões que, mesmo dispondo de água em abundância no passado, hoje enfrentam problemas de desabastecimento devido à má gestão dos recursos hídricos – um caso clássico é o do Mar de Aral. O Brasil administra bem a água que tem?
Andres – O Brasil vem dando passos seguros na direção correta de administrar bem as suas águas, especialmente a partir da Lei 9.433, de 1997, que completou 10 anos em 2007. A lei das águas adotou o uso múltiplo das águas e definiu os instrumentos para a atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). A Lei é um marco nessa mudança de percepção e de consciência. A partir de então, com a criação da ANA em 2000 e o fortalecimento do SINGREH, a questão tem sido tratada cada vez mais com maior prioridade. Devemos destacar, ainda, os avanços no uso racional em alguns setores industriais (bebidas, sucro-alcooleiro, siderúrgico) principalmente em função da cobrança pelo uso da água. Mas ainda existe muito a ser feito no campo da mudança de consciência e de mentalidade, no campo político, econômico e administrativo.
E quanto à preservação dos mananciais? A proteção das matas ciliares e o controle sobre o despejo de poluentes (como o esgoto) nas fontes de água doce é feito adequadamente no Brasil?
Andres – Os problemas de gestão da água relacionam-se diretamente com o uso e ocupação do solo nas bacias hidrográficas, que nesse aspecto é desordenado especialmente nas regiões mais habitadas. A ocupação desordenada em áreas de mananciais poderá vir a inviabilizá-los, agravando os problemas em algumas regiões metropolitanas, a exemplo de São Paulo. Há déficits na preservação de mananciais e na proteção de matas ciliares, devido ao mau uso e ocupação do solo e às dificuldades de uma fiscalização ambiental integrada. Também existem déficits no controle sobre o despejo de efluentes, especialmente aqueles difusos, urbanos e domésticos. No caso da poluição de origem industrial e de fontes pontuais, o Sistema Nacional de Meio Ambiente e os órgãos ambientais já alcançaram resultados parciais relevantes. O fortalecimento dos órgãos ambientais e o uso mais intenso de instrumentos econômicos (tal como o ICMS ecológico adotado com sucesso em alguns Estados), combinados com os instrumentos de comando e controle (fiscalização e licenciamento, por exemplo), podem dar um impulso maior para cuidar adequadamente dessas questões. Da mesma forma, são importantes novos programas que, a exemplo PRODES, tem seu princípio de ser voltado para resultados.
O Relatório de Desenvolvimento Humano afirma que os conflitos por água já não são raros e tendem a aumentar nos próximos anos. O senhor acha que, no futuro, a disputa pela exploração dos recursos hídricos pode provocar desentendimentos entre o Brasil e seus vizinhos ou mesmo entre os próprios Estados brasileiros?
Andres – Um dos princípios básicos a lei das águas é o uso múltiplo de recursos hídricos pelos diversos usuários – a industria, a agricultura, o transporte hidroviário, o consumo humano e animal, a geração de eletricidade, o turismo, esporte e lazer, etc. Para se evitarem desentendimentos entre setores e entre Estados ou paises vizinhos é urgente estruturar e institucionalizar o sistema de gestão de recursos hídricos, de modo a dar tratamento preventivo e a planejar previamente a que os conflitos se agravem. Nesse sentido é uma prioridade a cooperação latino-americana, a capacitação e troca de informações entre os vizinhos que compartilham bacias transfronteiriças.
Os avanços da biotecnologia e a demanda dos mercados internacionais contribuíram, nas últimas décadas, para o crescimento exponencial da área plantada no Brasil. Sabe-se, além disso, que parte significativa da produção é irrigada com água de rios e lagos. O senhor acha que o agrobusiness pode representar uma ameaça aos recursos hídricos?
Andres – O agrobusiness exercido de forma insustentável é uma ameaça aos recursos hídricos, provocando o assoreamento de cursos d’água, a contaminação por agrotóxicos e vários outros impactos ambientais negativos. Se submetido a controles ambientais adequados e a uma adequada regulação, com uso de tecnologias apropriadas, essa atividade pode ter seus impactos negativos reduzidos. O setor rural brasileiro consome 82% da água disponível. Desse montante, a irrigação responde por cerca de 69%. Nesse campo, a ANA firmou Acordo de Cooperação Técnica com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para articular as políticas agrícolas, de irrigação e de recursos hídricos, visando o uso racional da água e do solo. Acordo prevê a identificação de áreas irrigáveis, a disciplina do uso da água por meio da outorga, o incentivo a práticas conservacionistas de manejo nas microbacias e o reuso de água na irrigação.
O RDH cita como exemplo de boa prática um projeto no Ceará em que a instituição responsável pela bacia hidrográfica decidiu de forma participativa como seria feita a exploração dos mananciais. São comuns, nas grandes cidades brasileiras, campanhas pela economia de água. O senhor acha que os brasileiros se preocupam tanto quanto deveriam da gestão dos recursos hídricos? Se não, como mobilizar a população?
Andres – A gestão participativa, com o envolvimento de usuários, sociedade e governos é o método mais adequado para lidar com a questão, prevenir conflitos e promover justiça distributiva na gestão das águas. Existem outros exemplos e casos de sucesso da ação de comitês de bacias hidrográficas no Brasil, especialmente em áreas nas quais a disputa e os conflitos pelo recurso já impõem a necessidade de entendimentos. Apesar das campanhas pela economia, o cidadão urbano brasileiro ainda tem a ilusão da infinitude do recurso. Ainda é hidroalienado, não compreende o ciclo integral da água e vivencia apenas fragmentos desse ciclo em seu cotidiano. A promoção da hidroeducação e da hidroalfabetização nas escolas e fora delas – na mídia e por meio das instâncias de gestão participativa – é uma forma de mudar essa percepção e consciência.
Fonte: PNUD Brasil