Calçadas e acessibilidade
21 de agosto de 2012, às 15h12 - Tempo de leitura aproximado: 4 minutos
Jary de Carvalho e Castro*
O artigo 5º da Constituição Federal estabelece o que se convencionou a chamar de direito de ir e vir de todos os cidadãos brasileiros. Ou seja, qualquer pessoa, livre ou não de deficiência ou mobilidade reduzida, deve ter o direito de poder chegar facilmente a qualquer lugar. A liberdade a que me refiro neste caso, é aquela que possibilitaria com que caminhássemos pelos passeios públicos sem nos deparar com desníveis, buracos, inexistência de ligação entre ruas e calçadas, rampas fora dos padrões, lixeiras, pontos de ônibus, bancas de jornais, bueiros destampados, ambulantes e pisos escorregadios. Utopia ou não, o fato é que esses casos são ainda muito comuns nas mais diferentes cidades do Brasil.
Nos países desenvolvidos a legislação de trânsito prioriza o pedestre facilitando sua travessia e forçando a redução da velocidade dos carros. No Brasil ocorre o contrário. O privilégio concedido aos automóveis chega a criar barreiras intransponíveis para quem está a pé.
Da mesma forma, nossos passeios públicos deveriam facilitar a circulação dos pedestres e possibilitar com que as pessoas com deficiência e seus familiares encontrassem menos ou nenhuma dificuldade para chegar até atendimentos de saúde, cinemas, igrejas, estabelecimentos comerciais, parques públicos, shows artísticos. Locais comuns e que devem ser frequentados por qualquer pessoa, mesmo aquelas sem condições ou com dificuldades de locomoção. Os passeios sem qualidade e os locais inacessíveis inibem a circulação dessas pessoas, levando-as ao isolamento, forçando-as a se concentrarem em espaços fechados e impedindo-as de sociabilizarem-se.
As calçadas são os ambientes mais democráticos que existem, já que impulsionam as atividades econômicas. Por meio delas chegamos ao trabalho, ao comércio, aos clubes, aos shoppings. A grande questão é que esses espaços, conforme determinam as leis, são de responsabilidade do proprietário do imóvel e talvez por isso nos deparamos com as mais diferentes situações: pisos inadequados, degraus, raízes de árvores, enfim, passeios deteriorados e, o mais grave, inacessíveis.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2000, apontam que mais de 14% dos brasileiros convivem com algum tipo de deficiência definitiva. Esse dado pode aumentar significativamente, se incluirmos aí os idosos, os obesos ou os deficientes temporários, como aqueles que estão com algum membro imobilizado, assim como os milhares que se acidentam diariamente no trânsito de nossas cidades. Um estudo do Hospital das Clínicas de São Paulo revelou que idosos e mulheres com sapato de salto alto são as duas vítimas mais comuns de acidades nas calçadas.
Os Ministérios Públicos e uma parcela significativa das prefeituras municipais têm feito cumprir as legislações que prevêem que prédios de uso público e coletivo possibilitem acesso a todas as pessoas. Mas, de que adianta ter, por exemplo, um banco com rampas e elevadores acessíveis, se as calçadas, que são a principal forma de acesso a esses locais e aos meios de transportes, são inacessíveis?
A calçada acessível deve atender aos critérios contidos na NBR 9050/2004, da Associação Brasileira de Normas Técnicas. Os Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Creas), instituições que fiscalizam o exercício ilegal dessas profissões, há vários anos têm executado ações fiscalizatórias em parceria com os Ministérios Públicos Estaduais. Essas iniciativas, inclusive culminaram em ações práticas direcionadas a toda a população, como o Guia Prático para a Construção de Calçadas, elaborado pelo Crea de Mato Grosso do Sul, com o apoio de instituições públicas e privadas. De forma prática e, gratuitamente, o guia chega a todas as classes sociais levando informações atualizadas sobre legislações, pisos adequados, rebaixamento de guias, instalação de mobiliários urbanos e até mesmo as espécies de árvores ideais para esse fim.
Enquanto nos couber a obrigatoriedade de construir e reformar nossas calçadas ou enquanto os poderes públicos não colaborarem executando os passeios, assim como se faz com a pavimentação asfáltica, não cometeremos erros alegando ignorância, já que temos à mão mecanismos gratuitos para que respeitemos nosso semelhante.
A questão merece realmente muita atenção. Falamos das cidades que deixaremos para as próximas gerações. As soluções já nos bateram à porta. A construção de ambientes acessíveis deve ser cadeira obrigatória nos cursos de engenharia e arquitetura. Os órgãos públicos devem fazer cumprir a legislação e, principalmente, os engenheiros e arquitetos são os responsáveis pelos ambientes construídos. Muito nos cabe e já é chegada a hora de se caminhar olhando para o horizonte e não para baixo, desviando dos obstáculos do caminho.
*Engenheiro, presidente do Crea de Mato Grosso do Sul e Coordenador do Grupo de Trabalho Acessibilidade do Colégio de Presidentes do Sistema Confea/Crea