Campanha da Fraternidade 2007 – “O Brasil já foi samba, já foi carnaval. Hoje é a Amazônia”

22 de fevereiro de 2007, às 0h00 - Tempo de leitura aproximado: 10 minutos

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Foi lançada nesta quarta-feira, na ilha do Cumbu, em Belém, A ‘Campanha da Fraternidade 2007’, uma iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que elegeu a Amazônia como tema principal. A iniciativa ocorre anualmente há mais de vinte anos, com tendência para escolher temas espinhosos para a classe política e empresarial. Esse ano, tratando de questões como o trabalho escravo, reforma agrária e defesa do meio ambiente, a CNBB tem um novo desafio pela frente.

O lançamento contou com as presenças do arcebispo de Belém, Dom Orani Tempesta, da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, do secretário-geral da CNBB, Dom Odilo Pedro Scherer, que também é bispo auxiliar de São Paulo, entre outras personalidades. A cerimônia teve direito até a uma vídeo-mensagem do próprio Papa Bento XVI, recomendando aos brasileiros maior cuidado com “os povos e toda a natureza, em especial a da Amazônia”.

Dom Erwin Krautler, em trânsito, não pode estar presente, mas é seguramente um dos grandes idealizadores do tema da Campanha. Bispo da prelazia do Xingu, foi amigo da missionária assassinada em 2005, Dorothy Stang, e está há mais de 40 anos em atividade no Pará. Sua militância em prol dos trabalhadores rurais e comunidades tradicionais lhe rendeu incontáveis ameaças de morte. Em entrevista exclusiva ao Amazonia.org.br ele demonstra que sua determinação não arrefeceu. O bispo não economiza opiniões polêmicas sobre o papel de políticos e empresários, a violência no campo e o modelo de desenvolvimento que se quer para a Amazônia. Confira.

O trabalho das comissões pastorais já mereceu destaque, inclusive em campanhas anteriores, nas áreas de combate ao trabalho escravo, conflitos fundiários e uso da terra. A escolha do tema Amazônia desse ano é a consolidação dessa vocação?

Dom Erwin: Eu diria que sim. Isso foi uma luta de alguns anos. Naturalmente lançar uma campanha destacando uma região foi um desafio. Os bispos também pensam que futuramente vai ter que haver uma campanha do nordeste, do centro-oeste etc… Mas conseguimos convencer os bispos que a Amazônia é algo especial. O mundo tinteiro está olhando pra ela, não apenas pelo trabalho escravo, mas pela biodiversidade e toda uma especificidade de uma região que é sui generis. Antigamente quando se falava no Brasil a primeira associação era carnaval ou o futebol. Hoje é a Amazônia. Então a igreja não pode se omitir. Nós temos que ser os primeiros a destacar esse tema.

Qual será o foco? É possível reunir tantas frentes de trabalho possíveis em uma única ação?

Acho que isso depende também da igreja local. Cada igreja vai priorizar uma determinada fatia desse leque todo. Realmente é uma campanha muito ampla. Aqui na Amazônia, claro que vamos falar da nossa responsabilidade de trabalho com o povo local, e será outra maneira de enfocar Amazônia no sul e no sudeste. Ás vezes nessas regiões não se tem nem idéia do que é Amazônia. Por isso estou convicto de que o grande papel da campanha é sensibilizar o povo brasileiro como um todo. Esperamos do povo de todo Brasil que não entenda mais essa região apenas como província, colônia, sítio, algo que a gente vai simplesmente aproveitar, arrasar e destruir. Não. A amazonia é parte do Brasil, na verdade é quase metade do Brasil. Claro que o apelo também é dado aos políticos.

A campanha dura 40 dias. Que resultados podem ser esperados nesse tempo?

Eu pessoalmente estou almejando que essa campanha não termine na páscoa. A Amazônia é um assunto que mexe com o Brasil e com o mundo. O que estou acalentando que isso seja apenas uma largada. Um deslanchar de processo no Brasil e no mundo.

No longo prazo claro que queremos uma mudança qualitativa no trato com a Amazônia. Mas a curto e médio prazo, defendemos a erradicação completa e irrestrita do trabalho escravo. Não tem mais cabimento que no início do terceiro milênio ainda exista esse tipo de coisa. E não apenas aqueles que estão confinados em uma fazenda, mas também aqueles que não recebem seus direitos, por exemplo, os que não têm carteira assinada.

Que a reformar agrária seja realmente implementada numa perspectiva de projeto de desenvolvimento sustentável. Outra coisa: fim das queimadas. Outra coisa muito mais complicada é que a Amazonia não é para soja. Muita gente vai gritar, mas eu defendo isso. Também acho que não é para gado. Amazônia para gado é nas áreas de várzea, mas derrubar km² e km² numa tacada só e queimar tudo aquilo é uma agressão tamanha que não pode ser justificada para colocar a pata do boi naquele lugar. Estou aqui há 41 anos e sei do que estou falando. Eu já estou vendo o resultado da deteorização do solo. Hoje existem regiões enormes totalmente abandonadas, que viraram estepe [processo de conversão da terra conhecido como ‘savanização’].

São esperados atritos com governo e empresários da região?

Bom, quanto aos políticos, creio que não vamos provocar nesse sentido. Queremos provocar, mas no sentido positivo. Os políticos foram eleitos e tem que atender aos anseios do povo da Amazônia. Quanto aos empresários a situação é um pouco mais complicada. Quando se fala sobre desenvolvimento, há varias idéias sobre isso. Muitos empresários que vêm aqui querem fazer dinheiro investindo pouco e fazendo lucros fabulosos. Estamos defendendo um tipo de desenvolvimento que não coloca o lucro fácil, mas a família amazônida em primeiro lugar. O desenvolvimento para nós e´ favorecer a vida desses povos. Historicamente a Amazônia sempre foi explorada e isso continua até hoje.

O senhor teme que os ânimos se exaltem mais e piorem as ameaças que o senhor e outros missionários já recebem?

Para mim isso tudo é um pesadelo e naturalmente quando aumenta a ação, aumenta a ameaça. Esperamos que não. Por outro lado aqui você não pode pegar um caminho pelo meio. Tem um bom ditado brasileiro que diz que a gente não pode ‘acender uma vela a Deus e outra ao diabo’. Se você está a favor da amazonia não pode estar a favor da destruição. E desse jeito você mexe com gente gananciosa e perigosa. E se posiciona contra aspiração de grandes projetos, de grandes negócios. A gente não quer provocar, mas às vezes tem que comer o pão que o diabo amassou.

Como é trabalhar nas pastorais sob essas condições? As pessoas são aterrorizadas a ponto de desistir?

(pausa) Não é fácil dizer. Eu estou há meses sob proteção policial 24 horas por dia. E é muito constrangedor. Eu me dou muito bem com esses homens que estão me acompanhando, mas é uma coisa complicada. Você nunca mais anda só. Se dá um passo pra fora é acompanhado, onde quer que seja. Isso não é fácil. E não temos medo, achando que atrás de qualquer árvore tem um pistoleiro, mas não posso mais fazer o mesmo serviço que fiz antes. Por outro lado, a gente não bate em retirada, o que seria trair um povo e uma causa. E ninguém quer fazer isso. Vale dizer que não é todo mundo que está na linha de frete, tem gente que ajuda de diferentes formas. Mas as pastorais têm os seus objetivos definidos e para avançarmos naturalmente contamos com aliados e aliadas em todos os níveis. O que nós precisamos é da solidariedade de todo mundo. Não pode ser três gatos pingados defendendo uma causa.

O assassinato da missionária Dorothy Stang completou dois anos recentemente. De lá pra cá, houve algum passo importante em direção à contenção de conflitos fundiários no Pará?

Naturalmente esse caso chamou atenção do mundo inteiro. Mas nós esperávamos a implementação muito mais rápida e decisiva, em termos de assistência a esse povo. Não adianta só dar a terra. O governo tem que dar a estrutura para que se povo se sinta ligado a essa terra. Se isso não funciona, eles ficam reféns dos latifundiários. Se não tem dinheiro, o povo vende o que tem que é a madeira e fica refém dos madeireiros. Eu não estou combatendo madeireiros legais, que existem, mas estou denunciando o corte ilegal. Também não se pode assentar pessoa numa área pretendia pelos pecuaristas. Isso tem que ser resolvido primeiro. A gente não pode jogar esse povo simples humilde na cova dos leões, se não é conflito programado. E não adianta depois chamar os bombeiros quando o fogo bate no telhado. E nesse aspecto entra também o papel da justiça que infelizmente é muito morosa no Brasil.

Uma nota divulgada pela CNBB em janeiro apresentava críticas à imprensa no Pará. Haveria, segundo a nota, omissão ou até mesmo cumplicidade em relação a atos criminosos. Como vem se comportando a imprensa da Amazônia na cobertura da campanha?

Eu não sei disso. Não me lembro se tinha uma critica tão contundente contra a imprensa. Da minha parte não posso reclamar. Às vezes tem interpretações que não foram checadas. Ou a gente dá uma entrevista e aparece um titulo que não é bem aquilo. Mas de modo geral eu não me queixo, não. Claro que tem jornais que dão mais espaço e outros menos, dependendo a visão política e ideológica. Eu fui muitas vezes entrevistado e tive espaço.

O senhor tem uma militância pessoal contra o projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Essa bandeira será levantada também na campanha?

Diretamente não. Indiretamente sim. Naturalmente vamos falar sobre os projetos. No meu modo de ver a maneira com que eles querem implantar [Belo Monte] é muito duvidosa. A Eletronorte não toma posição diante de sérias criticas e dúvidas que foram elencadas por cientistas de nome e renome no Brasil. Eles não contam toda a verdade. Esse é fundamentalmente o nosso questionamento: Por que não se apresenta um projeto que tem vantagens e desvantagens? Por que só se fala em vantagens? Em Altamira até hoje o povo não sabe quais serão os impactos. Tem que gente que pergunta ao bispo se sua casa vai ser inundada. E segundo estudos científicos, o Xingu na época do verão (da seca) não tem condição de fazer funcionar todas essas turbinas, então vai ficar quatro, cinco meses fora de funcionamento. Isso significa que será necessária mais uma barragem e mais outra e mais outra… E assim todo Xingu será explorado e as áreas indígenas inundadas. Isso ninguém fala. Somos acusados de contra o desenvolvimento e de querer um debate do ponto de vista teológico, mas nada disso é verdade. Queremos um estudo de impacto que merece crédito e não superficial como estão fazendo.

O senhor acha que a superficialidade nos estudos de impacto de grandes projetos na Amazônia está se tornando um padrão?

Olha, eu fico arrepiado porque se prima por superficialidade num empreendimento que tem conseqüências inimagináveis e irrecuperáveis. A gente não pode brincar com uma coisa dessas. Isso é brincadeira de mau gosto do pior tipo. Estou pensando nas crianças de Altarima, nas crianças do Xingu. Nós já temos certa idade e talvez não vejamos as conseqüências. Mas os filhos e netos dessa geração vão sofrer. Será que não temos mais essa ética? Será que não pensamos mais que haverá uma geração que vai precisar de condições pra viver daqui a cem anos?

*Carolina Derivi
Fonte: Amazonia.org.br