Encíclica papal faz uma leitura sobre a situação das desigualdades no campo da agricultura no cenário mundial
2 de julho de 2015, às 15h28 - Tempo de leitura aproximado: 6 minutos
A encíclica “Laudato si” – sobre a Casa Comum, apresentada pelo papa Francisco, neste mês, reacendeu a pauta socioambiental internacionalmente e é considerada um documento de peso nos bastidores das discussões geopolíticas, que já ganha apoio de diversos segmentos da sociedade, como o Observatório do Clima, o movimento350.org. Ao mesmo tempo, tornou-se um bom instrumento de discussão, que antecede a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-21) e que, em vários trechos, trata da questão da agricultura neste contexto.
O documento robusto, com 246 tópicos, traz uma leitura abrangente da situação socioambiental no planeta e uma interpretação de caráter ecumênico sobre o sentido da chamada ecologia humana e integral. A análise é carregada de argumentos pautados na Ciência, além da religião e de na vivência do pontífice mais próxima da população carente. Técnico em Química e com formação em Filosofia, o também cidadão argentino Jorge Mario Bergoglio, traz essa bagagem para estruturar sua análise.
Papa Francisco chama a atenção para a necessidade de um espaço de debate pelas populações atingidas direta ou indiretamente, como agricultores, consumidores, autoridades, cientistas, produtores de sementes e populações vizinhas dos campos, entre outras. E avalia a importância de terem a possibilidade de expor as suas problemáticas ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para adotar decisões que visem o bem comum presente e futuro.
O pontífice trata enfaticamente, em vários trechos do documento, da dívida ecológica, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países.
“Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar”, alerta.
Segundo sua análise, na contemporaneidade há conhecimento e tecnologia suficientes para programar uma agricultura sustentável e diversificada, e vai mais longe. Fala da importância da rotação de culturas (versus monoculturas extensivas). “É possível favorecer a melhoria agrícola de regiões pobres, através de investimentos em infraestruturas rurais, na organização do mercado local ou nacional, em sistemas de irrigação, no desenvolvimento de técnicas agrícolas sustentáveis. Podem-se facilitar formas de cooperação ou de organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais. É tanto o que se pode fazer!”, enfatiza.
Especialmente no capítulo 129, reforça o sentido da desigualdade presente nos dias de hoje. Objeto de sua reflexão, reflete sobre as economias de larga escala, especialmente do setor agrícola, que, de acordo com o papa Francisco, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais.
Essa observação vem ao encontro da realidade de muitos agricultores familiares, no Brasil. Na encíclica, ele fala das dificuldades desses trabalhadores de desenvolverem outras formas de produção, mais diversificadas. Os empecilhos, em sua leitura, são decorrentes da dificuldade de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a infraestrutura de venda e transporte está ao serviço das grandes empresas. E chama a atenção, de forma incisiva, para as obrigações das autoridades.
“…Têm o direito e a responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação da produção. Às vezes, para que haja uma liberdade econômica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário por limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples proclamação da liberdade econômica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a política”.
Já no capítulo 134, aponta a questão dos transgênicos. “Embora não disponhamos de provas definitivas acerca do dano que poderiam causar os cereais transgênicos aos seres humanos e apesar de, em algumas regiões, a sua utilização ter produzido um crescimento econômico que contribuiu para resolver determinados problemas, há dificuldades importantes que não devem ser minimizadas…”, pondera. Segundo papa Francisco, se constata a concentração de terras em muitos locais onde estão estas culturas, resultando no progressivo desaparecimento de pequenos produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se viram obrigados a retirar-se da produção direta”.
Nesta balança de desigualdade, de acordo com papa Francisco, há a precarização do trabalho, e muitos assalariados agrícolas acabam por emigrar para miseráveis aglomerados das cidades. E continua – “A expansão destas culturas destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e afeta o presente ou o futuro das economias regionais. Em vários países, nota-se uma tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes e outros produtos necessários para o cultivo, e a dependência agrava-se quando se pensa na produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os agricultores a comprá-las às empresas produtoras”.
Diante dessas reflexões, o documento contribui para se avaliar a necessidade de mudança da relação das autoridades públicas, do mercado e da sociedade, como um todo, com o agricultor familiar e pequeno agricultor, ao mesmo tempo que discute a relação sustentável com a terra e o ecossistema, interligando essa rede aos efeitos que desencadeiam desde as Mudanças Climáticas e o Aquecimento Global à escassez de recursos, que gera um quadro evolutivo de desnutrição mundial.
*Sucena Shkrada Resk é jornalista, formada pela PUC-SP, há 23 anos, com especializações em Política Internacional e em Meio Ambiente e Sociedade, pela FESPSP, e é assessora de comunicação e educomunicadora socioambiental do Instituto Centro de Vida (ICV) – no escritório de Cotriguaçu – MT – Amazônia e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk.